O roteirista e diretor Cristiano Burlan nasceu em Porto Alegre, se criou e vive em São Paulo e no meio dessas duas cidades, estudou Cinema em Curitiba. Sua filmografia tem forte caráter pessoal e autoral ao lidar com questões do passado de sua família e na maneira como aborda a violência que sofreu e/ou presenciou. Fome, de 2015, é um de seus trabalhos mais singulares. E não apenas pelo que apresenta, mas principalmente, por conta da magnética e impactante presença de Jean-Claude Bernardet à frente dessa forte narrativa. Ele é Malbou, pessoa em situação de rua e ex-professor da USP que vaga por São Paulo em busca de um lugar para dormir e, se possível, água para se lavar. Burlan trafega aqui por algo entre o ficcional e o documental. Mas ao invés de um amálgama temos um embate entre encenação e realidade. Os pouco mais de dez minutos iniciais nos apresentam aquele que será chamado de Malbou. Ele caminha pelas praças e ruas de uma grande cidade. Nenhum diálogo, apenas a bela fotografia em preto e branco de Helder Filipe Martins acompanhando Bernardet pela região central da capital paulista. Em seguida vemos uma estudante (Ana Carolina Marinho) entrevistando pessoas reais na mesma situação e que relatam suas rotinas. Ela discute depois com seu orientador sobre a pesquisa acadêmica que está realizando. Malbou é um desses entrevistados, um homem que nasceu na Bélgica e veio para o Brasil na adolescência, assim como o próprio Bernardet. Ele não se esquiva em confrontar motoristas trancados em seus carros nas esquinas da metrópole. Pede dinheiro. Diante da recusa, pelo menos um sorriso, que não custa nada. Mas ele também sabe recusar quando está dormindo e é acordado por um casal que lhe oferece as sobras de um jantar em um caro restaurante. Caridade para aplacar culpas sociais não dá. Da mesma forma que ser confrontado por um ex-aluno que o questiona sobre a postura que tinha como professor e pensador. Fome se revela um profundo e contundente estudo do tecido social brasileiro e nos joga na cara a hipocrisia com a qual convivemos diariamente. Muitos “passam pano” ou simplesmente “fingem” que não é com eles. Seguem em frente com a “consciência tranquila” de que procuraram fazer o melhor. Na verdade, como dizem alguns, esses “mendigos” não querem trabalhar e contribuir com a sociedade e são, no fundo, uns “inúteis”. Burlan e Bernardet pensam diferente e nos brindam com um forte relato. Cru em essência, mas carregado de poesia. Em tempo: Jean-Claude Bernardet foi, ou melhor, é, um dos grandes pensadores do cinema e da cultura nacionais. Ele partiu no dia 12 de julho de 2025, aos 88 anos, e nos deixou um legado inestimável.
FOME (Brasil 2015). Direção: Cristiano Burlan. Elenco: Jean-Claude Bernardet, Ana Carolina Marinho, Henrique Zanoni, Gustavo Canovas e Francis Vogner. Duração: 90 minutos. Distribuição: Vitrine Filmes.







