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LIVRO FÍSICO

CINEMARDEN VAI AO OSCAR

O AGENTE SECRETO

Existem filmes que se revelam uma síntese da carreira de seus realizadores. Este é o caso de O Agente Secreto, escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho, natural do Recife, que passarei a tratar pelas iniciais KMF. Você pode até questionar a necessidade de destacar a cidade natal do cineasta. Mas quando se trata da obra de KMF, é simplesmente impossível separá-la da capital de Pernambuco. E diferente de O Som ao Redor e Aquarius, que retratavam regiões bem definidas da Veneza brasileira, o Recife de O Agente Secreto é tão intenso quanto ouvir Maria Bethânia. Seria muito fácil dizer que tem ligação direta com Retratos Fantasmas. Existe, realmente, uma forte conexão com o trabalho anterior do diretor, em especial pela forte presença do Cinema São Luiz; de Seu Alexandre, o projecionista; e do centro da antiga Ribeira de Mar dos Arrecifes. KMF nunca negou gostar de falar sobre aquilo que viveu e conhece bem. E neste ponto específico, O Agente Secreto preenche com louvor esses dois quesitos. A ação começa no carnaval de 1977, época de muita “pirraça”. Ouvimos uma gostosa conversa de rádio seguida por uma colagem de imagens representativas daquele período histórico, que nos situa no espaço e no tempo. Vemos um fusquinha amarelo chegando a um posto de gasolina na beira da estrada. Mas algo inusitado nos chama a atenção: um defunto estendido no chão coberto apenas por folhas de papelão. Dentro do carro está Marcelo (Wagner Moura). Ele saiu de Brasília e segue para Recife, mais especificamente para o Edifício Ofir, onde vive Dona Sebastiana (Tânia Maria) e outros “refugiados”. Não sabemos muito sobre ele. Ainda. Aos poucos, as peças de um gigantesco quebra-cabeça começam a se encaixar. Marcelo está sendo perseguido. Ele não faz parte da luta armada, mas se revelou incômodo para uma certa figura corrupta que se beneficia do poder vigente, do qual obtém vantagens. A ditadura que o Brasil viveu por 21 anos se faz presente. E o pior é que ela está impregnada na rotina de pessoas achacadas por ou vítimas da violência de policiais legitimados pelo Estado. Marcelo quer reencontrar Fernando (Enzo Nunes), seu filho com Fátima (Alice Carvalho). No momento, o menino está morando na casa do avô Alexandre (Carlos Francisco). Há também a misteriosa Elza (Maria Fernanda Cândido), que financia a fuga de Marcelo e lhe arruma um emprego no Instituto de Identificação, que fica bem ao lado do local de trabalho do delegado Cavalcanti (Robério Diógenes). Sem contar os matadores que estão em seu encalço. Relatando assim parece até se tratar de um filme complicado, cheio de personagens, tramas e subtramas. Daqueles que a gente costuma perder o fio da meada. Garanto que não é o caso aqui. KMF faz de O Agente Secreto uma obra mosaical. Mas é visível o amor, o carinho e o cuidado que ele tem com o roteiro e para com todas e todos que aparecem em cena. Sem distinção alguma. Seja uma participação maior ou apenas breve. Como se não bastasse, temos espaço para o humor e a fabulosa lenda urbana da “perna cabeluda”, bem como para homenagear o cinema de gênero ao destacar dois filmes em particular, Tubarão e A Profecia. Outra homenagem é prestada a um cineasta muito caro ao diretor, John Carpenter, o querido “João Carpinteiro” que deu nome às escolas de O Som ao Redor e Bacurau, na sequência trash/slasher rodada no Parque Treze de Maio. O Agente Secreto é um filme rico em camadas. E elas são muitas. Isso permite que a cada nova “visita” percebamos algo que nos passou batido na vez anterior. E quanto ao elenco? Wagner Moura é o protagonista absoluto e tem um dos melhores e mais complexos desempenhos de sua carreira, sutil e profundo ao mesmo tempo. Mas o mesmo pode ser dito do elenco de apoio. Tânia Maria é a Dona Sebastiana. E ponto final. Sua espontaneidade natural cativante faz brilhar todos os momentos em que ela aparece. Seu Alexandre, na pele do incrível Carlos Francisco, é pura dignidade, um homem de verdade, como bem diz Fátima, em papel marcante e vigoroso de Alice Carvalho. Já a trinca de matadores, vivida por Roney Villela, Gabriel Leone e Kaiony Venâncio, é assustadora. Da mesma forma, o delegado interpretado por Robério Diógenes e seus subordinados estão perfeitos na postura e maneirismos. As pessoas que vivem no Ofir não ficam atrás. Assim como o dissimulado e repulsivo Ghirotti de Luciano Chirolli, e a enigmática e determinada Elza de Maria Fernanda Cândido. O elenco contou com um experiente preparador, Leonardo Lacca, que fez esse trabalho nos filmes de ficção anteriores de KMF, além de ter sido diretor assistente em O Agente Secreto. Kleber conduz suas atrizes e seus atores com muita generosidade ao permitir que todas e todos tenham espaço e brilhos próprios. KMF conta também com o suporte técnico de uma baita e primorosa equipe. A começar pela fotografia quente e envolvente da russa radicada na França Evgenia Alexandrova, apoiada pelo desenho de produção de Thales Junqueira que nos leva até aquela Recife de 1977. Os cenários e os objetos de cenas auxiliam bastante nessa imersão, e encontram nos ótimos e detalhados figurinos de Rita Azevedo o complemento ideal que faz com que tudo funcione de forma orgânica e harmoniosa. Por fim, a montagem ágil de Matheus Farias e Eduardo Serrano é instigante da abertura até os créditos de encerramento desta sofisticada e apaixonante produção de Emilie Lesclaux. O Agente Secreto é o representante brasileiro na disputa por uma indicação ao Oscar 2026 na categoria de melhor filme internacional. Tem potencial para receber muitas indicações, e não apenas da Academia de Hollywood, mas também do Globo de Ouro, do Critics’ Choice, do Bafta, do SAG e demais sindicatos. Afinal, ele saiu de Cannes, em maio de 2025, com quatro importantes prêmios: melhor direção e melhor ator, além dos prêmios AFCAE (da Associação Francesa de Cinemas de Arte), e Fipresci (da Federação Internacional de Críticos de Cinema). Ganhar prêmios é ótimo. Mas o que importa mesmo é um filme encontrar seu público. E O Agente Secreto te espera com vigor, beleza, paixão, humanidade, resgate histórico e muita pirraça.              

O AGENTE SECRETO (Brasil 2025). Direção: Kleber Mendonça Filho. Elenco: Wagner Moura, Gabriel Leone, Maria Fernanda Cândido, Thomas Aquino, Tânia Maria, Carlos Francisco, Robério Diógenes, Alice Carvalho, Hermila Guedes, Luciano Chirolli, Roney Villela, Kaiony Venâncio, Isabél Zuaa, Licínio Januário, Laura Lufési, Enzo Nunes, Rubens Santos e Udo Kier. Duração: 160 minutos. Distribuição: Vitrine Filmes.

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